"Cuando el mal crece, el pequeño bien se agranda." (Antonio Porchia)

Karl Popper

Em busca de um mundo melhor

Página 187:

Kant e o Esclarecimento foram ridicularizados como ingênuos porque defenderam as ideias do liberalismo, porque acreditaram que a ideia de democracia é mais do que um fenômeno histórico passageiro. E ainda hoje ouvimos falar muito sobre o declínio dessas ideias. Mas, em vez de profetizar o declínio dessas ideias, seria melhor lutar por sua sobrevivência, pois tais ideias não apenas demonstraram sua viabilidade, mas também o caráter afirmado por Kant: uma ordem social pluralista é a moldura suficiente para qualquer objetivo, qualquer política que transcenda o presente imediato; qualquer política que tenha um sentido para a história e queira lhe dar um sentido.

Página 184:

Passo agora à discussão do segundo e mais importante significado da ideia de doação de sentido: a ideia que consiste em tentarmos dar uma tarefa não apenas a nossa vida individual, mas também a nossa vida política, a nossa vida como indivíduos que pensam politicamente; e, em particular, como indivíduos que consideram intolerável a tragédia absurda da história e veem nela uma exortação para se empenharem ao máximo a fim de tornar a história futura mais provida de sentido.

A tarefa é árdua, sobretudo porque a boa vontade e a boa-fé podem nos extraviar de maneira trágica. E, como defendo aqui as ideias do Esclarecimento, sinto-me especialmente comprometido a salientar em primeiro lugar que as ideias do Esclarecimento e do Racionalismo também conduziram às mais terríveis consequências.

Foi o terror de Robespierre que ensinou Kant – o qual havia dado boas-vindas à Revolução Francesa – que, sob o signo da liberdade, igualdade e fraternidade, podem-se também cometer os mais horrendos crimes; crimes tão horrendos quanto os perpetrados outrora na época das cruzadas, da caça às bruxas ou da Guerra dos Trinta Anos em nome do cristianismo. Mas Kant tirou uma lição da história de horror da Revolução Francesa. Essa lição, que nunca é demais reiterar, é que a crença fanática é sempre um mal e inconciliável com a meta de uma ordem social pluralista; e que é nosso dever nos opormos a toda espécie de fanatismo – mesmo quando seus objetivos são eticamente irrepreensíveis, e sobretudo quando seus objetivos são os nossos próprios. 
 
O perigo do fanatismo e o dever de nunca deixar de se contrapor a ele são, certamente, uma das mais importantes lições que podemos extrair da história.

Página 284:

Não tenho dúvida de que a democracia em que o Ocidente acredita seja apenas uma forma de Estado em que o poder é, nesse sentido, limitado e controlado. Pois a democracia em que cremos não é um Estado ideal. Sabemos muito bem que acontece muita coisa que não deveria acontecer. Sabemos que é infantil aspirar a ideais na política, e qualquer pessoa medianamente madura no Ocidente sabe que
toda política consiste na escolha do mal menor (como disse uma vez o poeta vienense Karl Kraus).

Para nós, existem apenas duas formas de governo: aquela que permite aos governados se livrar de seus governantes sem derramamento de sangue, e aquela que não lhes permite isso, ou apenas com derramamento de sangue. A primeira é chamada habitualmente de democracia; a segunda, de tirania ou ditadura. Mas aqui não importam nomes, mas apenas os fatos. 

Nós, no Ocidente, acreditamos na democracia apenas nesse sentido sóbrio – como uma forma de Estado do menor dos males. Foi assim também que a descreveu o homem que salvou a democracia e o Ocidente. “A democracia é a pior de todas as formas de governo”, disse uma vez Winston Churchill, “com exceção de todas as outras formas de governo”.

A pergunta de Platão (“Quem deve governar? Quem deve ter o poder?”) tem, portanto, uma formulação errônea. Acreditamos na democracia, mas não porque o povo governa no regime democrático. Nem você nem eu governamos; ao contrário, somos governados, e às vezes mais do que gostaríamos. Acreditamos na democracia como única forma de governo que é compatível com a oposição política e, portanto, com a liberdade política. 

Infelizmente, a questão de Platão, “Quem deve governar?”, nunca foi rejeitada pelos teóricos do Estado. Ao contrário, Rousseau formulou a mesma pergunta, mas lhe deu uma resposta inversa: “A vontade geral (do povo) deve governar – a vontade dos muitos, não a dos poucos”; uma resposta perigosa, que leva à mitologia e ao endeusamento do “povo” e de sua “vontade”. E também Marx perguntou, totalmente na linha de Platão: “Quem deve governar, os capitalistas ou os proletários?”; e ele também respondeu: “Os muitos devem governar, não os poucos; os proletários, não os capitalistas.”

Ao contrário de Rousseau e de Marx, vemos na decisão majoritária do voto ou da eleição apenas um método de produzir decisões sem derramamento de sangue e com o mínimo de restrição à liberdade. E insistimos em que as minorias têm seus direitos de liberdade, que jamais podem ser eliminados pela decisão majoritária.

Minhas explanações talvez tenham deixado claro que as palavras da moda “massa” e “elite” e os slogans da “massificação” e da “rebelião das massas” são expressões que se originam do círculo de ideias do platonismo e do marxismo. Assim como Rousseau e Marx simplesmente inverteram a resposta platônica, alguns oponentes de Marx invertem a resposta marxista. Eles querem reagir contra a “rebelião das massas” por uma “revolta da elite”, retornando assim à resposta platônica e à pretensão da elite ao governo. Mas tudo isso está totalmente equivocado. Deus nos guarde do antimarxismo que simplesmente inverte o marxismo: nós o conhecemos o suficiente. Nem mesmo o comunismo é pior do que a “elite” antimarxista que governou a Itália, a Alemanha e o Japão e que só foi banida com um banho de sangue mundial.

Mas, assim perguntam os cultos e os semicultos: É correto meu voto não valer mais do que o de um varredor de rua inculto? Não há uma elite intelectual que vê mais longe do que a massa dos incultos e por isso deveria ter uma influência maior sobre as grandes decisões políticas?

A resposta é que infelizmente os cultos e semicultos têm, em todo caso, uma influência maior. Eles escrevem livros e jornais, ensinam e dão palestras, falam em discussões e podem exercer sua influência como membros de seus partidos políticos. Não quero dizer, contudo, que acho bom que a influência dos cultos seja maior do que a do varredor de rua. Pois a ideia platônica do governo dos sábios e dos bons deve ser, em minha opinião, rejeitada incondicionalmente. Quem decide sobre a sabedoria e a estupidez? Os mais sábios e melhores não foram crucificados? E por aqueles que eram reconhecidos como sábios e bons?


Página 263:

Eu gostaria antes de tudo de me apresentar como um filósofo antiquado – como um adepto daquele movimento há muito superado e desaparecido que Kant chamou de Esclarecimento. Isso significa que sou um racionalista e creio na verdade e na razão.

Um racionalista não é de modo algum, como nossos oponentes anti-racionalistas afirmam, alguém que gostaria de ser um ser puramente racional e de tornar as outras pessoas seres puramente racionais. Isso seria extremamente irracional. Toda pessoa racional e também portanto – espero – um racionalista sabe muito bem que a razão pode desempenhar na vida humana apenas um papel muito modesto. É o papel da reflexão crítica, da discussão crítica.

O que penso quando falo de razão ou de racionalismo não é nada mais que a convicção de que podemos aprender pela crítica – pela discussão com outros e pela autocrítica. Um racionalista é, portanto, uma pessoa disposta aprender com os outros, não por simplesmente aceitar qualquer lição, mas por deixar que os outros critiquem suas ideias e por criticar as ideias deles.

A ênfase aqui recai sobre as palavras "discussão crítica": o verdadeiro racionalista não acredita que ele próprio, ou alguma outra pessoa, seja dono da sabedoria. Ele sabe que precisamos continuamente de novas ideias e que a crítica não nos ajuda a conseguir novas ideias. Mas pode nos ajudar a separar o joio do trigo. Também sabe que a aceitação ou a rejeição de uma ideia jamais pode ser um assunto puramente racional. No entanto, apenas a discussão crítica pode nos ajudar a ver uma questão de cada vez mais lados e a julgá-la corretamente. 

Um racionalista evidentemente não afirmará que todas as relações humanas podem ser esgotadas pela discussão crítica. Isso também seria extremamente irracional. Mas um racionalista pode talvez indicar que a atitude do give and take (dar e receber), que forma a base da discussão crítica, é também de grande importância em termos puramente humanos. Pois um racionalista será facilmente capaz de perceber que deve sua razão a outras pessoas. Perceberá facilmente que a atitude crítica só pode ser o resultado da crítica dos outros e que só podemos ser autocríticos mediante a crítica dos outros.

Talvez a melhor forma de exprimir atitude racional seja dizendo: Talvez você esteja certo, e talvez eu esteja errado; e se talvez, em nossa discussão crítica, não decidirmos definitivamente quem está certo, podemos ainda esperar ver as coisas com mais clareza depois de tal discussão. Podemos aprender um com o outro, desde que não esqueçamos que o importante não é saber quem está correto, mas aproximar-se da verdade objetiva. Pois nosso interesse está sobretudo na verdade objetiva.

Página 267:

O princípio da dignidade da pessoa significa, na compreensão de Kant, respeitar todas as pessoas e suas convicções. Kant vinculou essa regra estreitamente ao princípio que os ingleses chamam, com razão, de regra de ouro, e que pode se traduzir banalmente como:  "não faça aos outros o que não queres que te façam!". Além disso, ele associou esse princípio à ideia de liberdade de pensamento.

Talvez seja verdade que a liberdade de pensamento jamais possa ser totalmente reprimida. Mas ela pode ser amplamente reprimida, pois sem o livre intercâmbio de pensamento não pode haver uma liberdade real de pensamento. Precisamos de outras pessoas com quem testar nossos pensamentos; para descobrir se ele são válidos. A discussão crítica é o fundamento do livre pensar do indivíduo. Isso significa que a total liberdade de pensamento é impossível sem liberdade política. E a liberdade política se torna com isso o pré-requisito do uso total, livre da razão por parte do indivíduo.

Mas a liberdade política, por sua vez, só pode ser assegurada pela tradição, pela prontidão tradicional a defendê-la, a lutar por ela, a fazer sacrifício por ela.

Afirmou-se com frequência que o racionalismo se contrapõe a toda tradição; e é verdade que o racionalismo reserva-se o direito de discutir criticamente qualquer tradição. Mas, no fim das contas, o racionalismo repousa, ele mesmo, na tradição; na tradição do pensamento crítico, da livre discussão, da linguagem simples, clara, e da liberdade política.

Página 282:

Eu gostaria de discordar de uma visão que sempre se ouviu de diferentes maneiras.  A visão de que a decisão entre as formas de economia ocidental e oriental depende, em última análise, da superioridade econômica de uma dessas duas formas. Pessoalmente, acredito na superioridade econômica de uma economia de mercado livre e na inferioridade da assim chamada economia planificada. Mas considero totalmente errôneo lançar mão de argumentos econômicos para fundamentar, ou até mesmo fortalecer, nossa rejeição da tirania.

Mesmo se fosse verdade que a economia estatal, com um planejamento centralizado, fosse superior à economia de mercado livre, eu seria contra a economia planificada simplesmente porque ela amplia o poder do Estado até a tirania. Não é a ineficiência econômica do comunismo que combatemos; é a sua falta de liberdade e de humanidade. Não estamos dispostos a vender nossa liberdade por um prato de lentilhas – tampouco pela máxima produtividade, nem pela maior riqueza, nem pela máxima segurança económica –, caso fosse possível comprar tais coisas com a falta de liberdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Karl Popper

Em busca de um mundo melhor Página 187: Kant e o Esclarecimento foram ridicularizados como ingênuos porque defenderam as ideias do liberalis...