"Cuando el mal crece, el pequeño bien se agranda." (Antonio Porchia)

Karl Popper

Em busca de um mundo melhor

Página 187:

Kant e o Esclarecimento foram ridicularizados como ingênuos porque defenderam as ideias do liberalismo, porque acreditaram que a ideia de democracia é mais do que um fenômeno histórico passageiro. E ainda hoje ouvimos falar muito sobre o declínio dessas ideias. Mas, em vez de profetizar o declínio dessas ideias, seria melhor lutar por sua sobrevivência, pois tais ideias não apenas demonstraram sua viabilidade, mas também o caráter afirmado por Kant: uma ordem social pluralista é a moldura suficiente para qualquer objetivo, qualquer política que transcenda o presente imediato; qualquer política que tenha um sentido para a história e queira lhe dar um sentido.

Página 184:

Passo agora à discussão do segundo e mais importante significado da ideia de doação de sentido: a ideia que consiste em tentarmos dar uma tarefa não apenas a nossa vida individual, mas também a nossa vida política, a nossa vida como indivíduos que pensam politicamente; e, em particular, como indivíduos que consideram intolerável a tragédia absurda da história e veem nela uma exortação para se empenharem ao máximo a fim de tornar a história futura mais provida de sentido.

A tarefa é árdua, sobretudo porque a boa vontade e a boa-fé podem nos extraviar de maneira trágica. E, como defendo aqui as ideias do Esclarecimento, sinto-me especialmente comprometido a salientar em primeiro lugar que as ideias do Esclarecimento e do Racionalismo também conduziram às mais terríveis consequências.

Foi o terror de Robespierre que ensinou Kant – o qual havia dado boas-vindas à Revolução Francesa – que, sob o signo da liberdade, igualdade e fraternidade, podem-se também cometer os mais horrendos crimes; crimes tão horrendos quanto os perpetrados outrora na época das cruzadas, da caça às bruxas ou da Guerra dos Trinta Anos em nome do cristianismo. Mas Kant tirou uma lição da história de horror da Revolução Francesa. Essa lição, que nunca é demais reiterar, é que a crença fanática é sempre um mal e inconciliável com a meta de uma ordem social pluralista; e que é nosso dever nos opormos a toda espécie de fanatismo – mesmo quando seus objetivos são eticamente irrepreensíveis, e sobretudo quando seus objetivos são os nossos próprios. 
 
O perigo do fanatismo e o dever de nunca deixar de se contrapor a ele são, certamente, uma das mais importantes lições que podemos extrair da história.

Página 284:

Não tenho dúvida de que a democracia em que o Ocidente acredita seja apenas uma forma de Estado em que o poder é, nesse sentido, limitado e controlado. Pois a democracia em que cremos não é um Estado ideal. Sabemos muito bem que acontece muita coisa que não deveria acontecer. Sabemos que é infantil aspirar a ideais na política, e qualquer pessoa medianamente madura no Ocidente sabe que
toda política consiste na escolha do mal menor (como disse uma vez o poeta vienense Karl Kraus).

Para nós, existem apenas duas formas de governo: aquela que permite aos governados se livrar de seus governantes sem derramamento de sangue, e aquela que não lhes permite isso, ou apenas com derramamento de sangue. A primeira é chamada habitualmente de democracia; a segunda, de tirania ou ditadura. Mas aqui não importam nomes, mas apenas os fatos. 

Nós, no Ocidente, acreditamos na democracia apenas nesse sentido sóbrio – como uma forma de Estado do menor dos males. Foi assim também que a descreveu o homem que salvou a democracia e o Ocidente. “A democracia é a pior de todas as formas de governo”, disse uma vez Winston Churchill, “com exceção de todas as outras formas de governo”.

A pergunta de Platão (“Quem deve governar? Quem deve ter o poder?”) tem, portanto, uma formulação errônea. Acreditamos na democracia, mas não porque o povo governa no regime democrático. Nem você nem eu governamos; ao contrário, somos governados, e às vezes mais do que gostaríamos. Acreditamos na democracia como única forma de governo que é compatível com a oposição política e, portanto, com a liberdade política. 

Infelizmente, a questão de Platão, “Quem deve governar?”, nunca foi rejeitada pelos teóricos do Estado. Ao contrário, Rousseau formulou a mesma pergunta, mas lhe deu uma resposta inversa: “A vontade geral (do povo) deve governar – a vontade dos muitos, não a dos poucos”; uma resposta perigosa, que leva à mitologia e ao endeusamento do “povo” e de sua “vontade”. E também Marx perguntou, totalmente na linha de Platão: “Quem deve governar, os capitalistas ou os proletários?”; e ele também respondeu: “Os muitos devem governar, não os poucos; os proletários, não os capitalistas.”

Ao contrário de Rousseau e de Marx, vemos na decisão majoritária do voto ou da eleição apenas um método de produzir decisões sem derramamento de sangue e com o mínimo de restrição à liberdade. E insistimos em que as minorias têm seus direitos de liberdade, que jamais podem ser eliminados pela decisão majoritária.

Minhas explanações talvez tenham deixado claro que as palavras da moda “massa” e “elite” e os slogans da “massificação” e da “rebelião das massas” são expressões que se originam do círculo de ideias do platonismo e do marxismo. Assim como Rousseau e Marx simplesmente inverteram a resposta platônica, alguns oponentes de Marx invertem a resposta marxista. Eles querem reagir contra a “rebelião das massas” por uma “revolta da elite”, retornando assim à resposta platônica e à pretensão da elite ao governo. Mas tudo isso está totalmente equivocado. Deus nos guarde do antimarxismo que simplesmente inverte o marxismo: nós o conhecemos o suficiente. Nem mesmo o comunismo é pior do que a “elite” antimarxista que governou a Itália, a Alemanha e o Japão e que só foi banida com um banho de sangue mundial.

Mas, assim perguntam os cultos e os semicultos: É correto meu voto não valer mais do que o de um varredor de rua inculto? Não há uma elite intelectual que vê mais longe do que a massa dos incultos e por isso deveria ter uma influência maior sobre as grandes decisões políticas?

A resposta é que infelizmente os cultos e semicultos têm, em todo caso, uma influência maior. Eles escrevem livros e jornais, ensinam e dão palestras, falam em discussões e podem exercer sua influência como membros de seus partidos políticos. Não quero dizer, contudo, que acho bom que a influência dos cultos seja maior do que a do varredor de rua. Pois a ideia platônica do governo dos sábios e dos bons deve ser, em minha opinião, rejeitada incondicionalmente. Quem decide sobre a sabedoria e a estupidez? Os mais sábios e melhores não foram crucificados? E por aqueles que eram reconhecidos como sábios e bons?


Página 263:

Eu gostaria antes de tudo de me apresentar como um filósofo antiquado – como um adepto daquele movimento há muito superado e desaparecido que Kant chamou de Esclarecimento. Isso significa que sou um racionalista e creio na verdade e na razão.

Um racionalista não é de modo algum, como nossos oponentes anti-racionalistas afirmam, alguém que gostaria de ser um ser puramente racional e de tornar as outras pessoas seres puramente racionais. Isso seria extremamente irracional. Toda pessoa racional e também portanto – espero – um racionalista sabe muito bem que a razão pode desempenhar na vida humana apenas um papel muito modesto. É o papel da reflexão crítica, da discussão crítica.

O que penso quando falo de razão ou de racionalismo não é nada mais que a convicção de que podemos aprender pela crítica – pela discussão com outros e pela autocrítica. Um racionalista é, portanto, uma pessoa disposta aprender com os outros, não por simplesmente aceitar qualquer lição, mas por deixar que os outros critiquem suas ideias e por criticar as ideias deles.

A ênfase aqui recai sobre as palavras "discussão crítica": o verdadeiro racionalista não acredita que ele próprio, ou alguma outra pessoa, seja dono da sabedoria. Ele sabe que precisamos continuamente de novas ideias e que a crítica não nos ajuda a conseguir novas ideias. Mas pode nos ajudar a separar o joio do trigo. Também sabe que a aceitação ou a rejeição de uma ideia jamais pode ser um assunto puramente racional. No entanto, apenas a discussão crítica pode nos ajudar a ver uma questão de cada vez mais lados e a julgá-la corretamente. 

Um racionalista evidentemente não afirmará que todas as relações humanas podem ser esgotadas pela discussão crítica. Isso também seria extremamente irracional. Mas um racionalista pode talvez indicar que a atitude do give and take (dar e receber), que forma a base da discussão crítica, é também de grande importância em termos puramente humanos. Pois um racionalista será facilmente capaz de perceber que deve sua razão a outras pessoas. Perceberá facilmente que a atitude crítica só pode ser o resultado da crítica dos outros e que só podemos ser autocríticos mediante a crítica dos outros.

Talvez a melhor forma de exprimir atitude racional seja dizendo: Talvez você esteja certo, e talvez eu esteja errado; e se talvez, em nossa discussão crítica, não decidirmos definitivamente quem está certo, podemos ainda esperar ver as coisas com mais clareza depois de tal discussão. Podemos aprender um com o outro, desde que não esqueçamos que o importante não é saber quem está correto, mas aproximar-se da verdade objetiva. Pois nosso interesse está sobretudo na verdade objetiva.

Página 267:

O princípio da dignidade da pessoa significa, na compreensão de Kant, respeitar todas as pessoas e suas convicções. Kant vinculou essa regra estreitamente ao princípio que os ingleses chamam, com razão, de regra de ouro, e que pode se traduzir banalmente como:  "não faça aos outros o que não queres que te façam!". Além disso, ele associou esse princípio à ideia de liberdade de pensamento.

Talvez seja verdade que a liberdade de pensamento jamais possa ser totalmente reprimida. Mas ela pode ser amplamente reprimida, pois sem o livre intercâmbio de pensamento não pode haver uma liberdade real de pensamento. Precisamos de outras pessoas com quem testar nossos pensamentos; para descobrir se ele são válidos. A discussão crítica é o fundamento do livre pensar do indivíduo. Isso significa que a total liberdade de pensamento é impossível sem liberdade política. E a liberdade política se torna com isso o pré-requisito do uso total, livre da razão por parte do indivíduo.

Mas a liberdade política, por sua vez, só pode ser assegurada pela tradição, pela prontidão tradicional a defendê-la, a lutar por ela, a fazer sacrifício por ela.

Afirmou-se com frequência que o racionalismo se contrapõe a toda tradição; e é verdade que o racionalismo reserva-se o direito de discutir criticamente qualquer tradição. Mas, no fim das contas, o racionalismo repousa, ele mesmo, na tradição; na tradição do pensamento crítico, da livre discussão, da linguagem simples, clara, e da liberdade política.

Página 282:

Eu gostaria de discordar de uma visão que sempre se ouviu de diferentes maneiras.  A visão de que a decisão entre as formas de economia ocidental e oriental depende, em última análise, da superioridade econômica de uma dessas duas formas. Pessoalmente, acredito na superioridade econômica de uma economia de mercado livre e na inferioridade da assim chamada economia planificada. Mas considero totalmente errôneo lançar mão de argumentos econômicos para fundamentar, ou até mesmo fortalecer, nossa rejeição da tirania.

Mesmo se fosse verdade que a economia estatal, com um planejamento centralizado, fosse superior à economia de mercado livre, eu seria contra a economia planificada simplesmente porque ela amplia o poder do Estado até a tirania. Não é a ineficiência econômica do comunismo que combatemos; é a sua falta de liberdade e de humanidade. Não estamos dispostos a vender nossa liberdade por um prato de lentilhas – tampouco pela máxima produtividade, nem pela maior riqueza, nem pela máxima segurança económica –, caso fosse possível comprar tais coisas com a falta de liberdade.

Bryan Magee

Confissões de um filósofo, páginas 211 a 213:

Foi com relação à filosofia da ciência que Popper elaborou suas ideias mais fundamentais: 

1) Nunca somos capazes de estabelecer com segurança a veracidade de qualquer enunciado irrestritamente geral sobre o mundo e, portanto, de nenhuma lei ou teoria científica.

2) Por ser impossível em termos lógicos chegar a estabelecer a veracidade de uma teoria, qualquer tentativa nesse sentido é uma tentativa de fazer o impossível; portanto, não é só o positivismo lógico que deve ser abandonado em virtude de seu verificacionismo, mas também toda filosofia e toda ciência envolvidas com a busca da certeza, busca que dominou pensamento ocidental de Descartes até Russel.

3) Por não conhecermos, e nunca podermos conhecer, no sentido tradicional dessa palavra, a verdade de qualquer uma de nossas teorias, todo o nosso conhecimento científico é, e sempre será, falível e corrigível.

4) Nosso conhecimento não aumenta, como ao  longo de séculos se acreditou que acontecesse,  pelo perpétuo acréscimo de novas certezas ao conjunto de certezas existentes, mas pela repetida derrubada de teorias existentes por teorias melhores, o que significa principalmente teorias que explicam mais ou que geram previsões mais exatas.

5) Devemos esperar que essas teorias melhores, por sua vez, sejam um dia substituídas por teorias ainda melhores.

6) Esse processo jamais terá fim, de modo que o que chamamos de nosso conhecimento somente pode chegar a ser constituído de nossas teorias.

7) Nossas teorias são produtos da nossa mente.

 8) Somos livres para inventar absolutamente qualquer teoria, mas, antes que qualquer teoria dessas possa ser aceita como conhecimento, é preciso que se demonstre que ela é preferível a qualquer outra ou quaisquer outras que substituiria caso a aceitássemos.

9) Uma preferência dessa ordem somente pode ser estabelecida por testes rigorosos.

10) Embora os testes não possam estabelecer a veracidade de uma teoria, eles podem determinar sua falsidade - ou revelar falhas nela - e, portanto, embora não possamos nunca ter elementos para acreditar na veracidade de uma teoria, podemos ter elementos decisivos para preferir uma teoria a outra.

11) Por conseguinte, o comportamento racional consiste em basear nossas escolhas e decisões no "que nos é dado saber" ao mesmo tempo que procuramos substituí-lo por algo melhor.

12) Logo, se quisermos progredir, não devemos lutar até a morte em defesa de teorias existentes, mas acolher as críticas a elas e permitir que nossas teorias morram no nosso lugar.

Foi só depois que desenvolveu essas ideias a um alto nível de sofisticação com relação às ciências naturais que Popper percebeu que suas implicações no campo das ciências sociais eram também incontestáveis.

Um programa político ou social é uma prescrição baseada em alto grau em hipóteses empíricas – "Se quisermos obter x, devemos fazer A, mas, se quisermos que aconteça y, devemos fazer B".  Nunca podemos ter certeza de que uma hipótese ou outra esteja certa, e é uma questão de experiência universal que elas quase sempre são falhas e às vezes completamente erradas.  O procedimento racional consiste em, antes de lhes designar recursos reais, submetê-las ao exame crítico com tanto rigor quanto as circunstâncias o permitam e revisá-las a luz de uma crítica eficaz.  Então,  depois que tenham sido lançadas, manter uma vigilância cuidadosa sobre sua implementação prática para ver se estão tendo consequências indesejáveis, além de estar preparado para alterá-las na eventualidade de tais resultados negativos.  Mais uma vez, a ideia é sacrificar hipóteses em vez de seres humanos ou recursos valiosos (incluindo-se o tempo).

Uma sociedade que age dessa forma terá maior sucesso na realização dos objetivos daqueles que elaboram suas políticas, do que outra em que se proíba a discussão crítica dessas políticas ou comentários críticos das consequências práticas dessas políticas.  A repressão à crítica significa que mais erros passarão despercebidos na formulação da política; e também que, depois de terem sido implementadas políticas equivocadas, elas perdurarão mais tempo antes de serem alteradas ou abandonadas.

Com base nesse ponto, Popper cria uma sólida estrutura de argumentação no sentido de que, mesmo em temos puramente práticos, e independentemente de considerações morais, uma sociedade livre (ou o que ele chama de sociedade aberta) fará um progresso maior e melhor a longo prazo do que qualquer forma de governo autoritário.

Fundamentais à sua filosofia política, como à sua epistemologia e filosofia da ciência, são as ideias de que é fácil estar equivocado, mas impossível chegar a ter certeza de estar certo, e de que a crítica é o agente do aprimoramento.

Em política essa é uma argumentação profundamente original, além de apresentar uma importância prática incalculável. Antes de Popper, quase todos acreditavam que a democracia estava destinada a ser ineficaz e lenta, mesmo que, apesar disso, devesse ser preferida em virtude das vantagens da liberdade e de outros benefícios morais; e acreditavam que a forma mais eficaz de governo em teoria seria algum tipo de ditadura esclarecida.

Popper demostrou não ser esse o caso. E ele nos proporciona um entendimento totalmente novo e mais profundo do fato de que a maioria das sociedades mais bem-sucedidas do mundo, em termos materiais, são democracias liberais. Isso não ocorre – como, mais uma vez, era a opinião da maioria das pessoas até então – porque sua prosperidade lhes possibilitou esse luxo dispendiosos chamado democracia. Ocorre, sim, porque a democracia desempenhou um papel crucial em içá-las de uma situação na qual a maioria de seus membros era pobre, o que era o caso em quase todas essas sociedades quando a democracia começou.

Voltaire

Cartas filosóficas

Pg. 20:
A Inglaterra é o país das seitas. Um inglês, como homem livre, vai para o céu pelo caminho que lhe aprouver.

Pg 25:
Se houvesse na Inglaterra apenas uma religião, seu despotismo seria temível; se houvesse apenas duas, elas se degolariam; mas existem trinta e elas vivem em paz.

Dicionário Filosófico

TOLERÂNCIA
O que é a tolerância? Tolerância é a salvação da humanidade. Estamos todos cheios de fraquezas e erros. Perdoemos reciprocamente nossas tolices.
...
Nós já falamos e não temos outra coisa a dizer: se vocês tiverem duas religiões, elas vão se degolar; se vocês tiverem trinta, elas viverão em paz.
...
Nós devemos nos tolerar mutuamente porque somos todos fracos, inconsequentes, sujeitos a mudanças e a erros. Uma roseira inclinada para a esquerda diria a uma roseira inclinada para a direita: "inclise-se do meu jeito, miserável, ou apresentarei uma denúncia para que te arranquem e te queimem!" ?

Karl Popper (2)

Em busca de um mundo melhor

Pg 291 :
Senhoras e senhores, estou longe de acreditar no progresso ou numa lei do progresso. Na história da humanidade há altos e baixos, e os pontos altos de riqueza podem muito bem aparecer ao mesmo tempo que os de depravação, ou os pontos altos da arte ao mesmo tempo que os pontos mais baixos de solicitude. Há mais de quarenta anos, escrevi contra a crença no progresso e contra a influência de modas e da modernidade na arte e na ciência. Ainda ontem fomos exortados a acreditar na ideia de modernidade e de progresso, e hoje querem nos injetar o pessimismo cultural. Em minha longa vida – e eu gostaria de dizer isto contra os pessimistas – não só vi retrocessos, mas também progressos nítidos e bastante palpáveis. Os críticos culturais que não querem admitir nada de bom em nossa época e em nossa sociedade são cegos para isso, e cegam muitas outras pessoas. Creio que é danoso quando a intelligentsia dominante e admirada diz constantemente às pessoas que elas na verdade estão vivendo num inferno. Pois isso não só as torna descontentes – isso não seria tão ruim assim –, mas também infelizes. Isso arranca delas a alegria de viver. Como foi que Beethoven, que pessoalmente foi profundamente infeliz, terminou a obra de sua vida? Com a Ode à alegria, de Schiller.

Beethoven viveu numa época de frustração das esperanças de liberdade. A Revolução Francesa tinha sucumbido no Terror e no império de Napoleão. A Restauração de Metternich reprimiu a ideia de democracia e aguçou a oposição de classes. A miséria das massas era grande. O hino à alegria de Beethoven é um protesto apaixonado contra a oposição de classes, pela qual a humanidade é dividida; "severamente dividida" , como diz Schiller. Beethoven modifica essas palavras numa passagem para uma explosão do coro e escreve: "insolentemente dividida". Mas ele não conhece ódio de classe – apenas amor ao próximo e irmandade. E quase todas as obras de Beethoven terminam ou em clima de consolo, como a Missa Solemnis, ou de júbilo, como as sinfonias e Fidelio.

Muitos de nossos artistas produtivos contemporâneos são vítimas da propaganda do pessimismo cultural. Eles acreditam que é sua tarefa representar horrivelmente o que eles consideram uma época horrível. É verdade que até mesmo os grandes artistas do passado fizeram exatamente isso. Estou pensando em Goya ou Kathe Kollwitz. A crítica à sociedade é necessária e deve ser perturbadora. Mas o sentido mais profundo de tal arte não deve ser o lamento, mas um chamado para superar o sofrimento. É o que encontramos em Figaro, que é carregada de crítica a sua época, com chiste, sátira, ironia; mas também repleta de significado mais profundo. Há ali também muita seriedade e até mesmo dor; mas também muita alegria e vitalidade transbordante.

Conjecturas e Refutações

Loc 10207:
A ideia de que a revolução terá por tarefa livrar-nos da conspiração capitalista e, com ela, da oposição à reforma social, está muito disseminada. Mas é uma ideia insustentável, ainda que suponhamos, por um momento, que tal conspiração exista. Com efeito, uma revolução tem tendência a substituir os velhos senhores por novos senhores, e quem garante que esses novos irão ser melhores? A teoria da revolução ignora o aspecto mais importante da vida social: que aquilo de que necessitamos não é tanto de boas pessoas, mas de boas instituições. Mesmo o melhor dos homens pode ser corrompido pelo poder. Mas as instituições que permitam aos governados exercer algum controle efetivo sobre os governantes forçarão até os maus de entre estes últimos a agir de acordo com o que os primeiros consideram ser os seus interesses. Ou, para pôr a questão doutro modo: nós gostaríamos de ter bons governantes, mas a experiência histórica demonstra-nos que não é provável que os obtenhamos. E é por isso que é tão importante criar instituições que impeçam mesmo os maus governantes de causar demasiado dano.

Pg 272:
Obviamente não é a ideia do cristianismo que leva ao terror e à desumanidade. É, antes, a ideia da ideia única, unificada, da crença numa crença única, unificada e exclusiva. E, visto que me designei como racionalista, é meu dever apontar que o terror do racionalismo, da religião da razão, foi, se possível, pior do que o terror do fanatismo cristão, ou maometano ou judaico. Uma ordem social genuinamente racionalista é tão impossível quanto uma genuinamente cristã; e a tentativa de realizar o impossível deve, aqui, conduzir ao menos às mesmas monstruosidades. O melhor que se pode dizer sobre o Terror de Robespierre é que durou relativamente pouco.

Aqueles entusiastas bem-intencionados que têm o desejo e a necessidade de unificar o Ocidente sob a liderança de uma ideia fascinante não sabem o que estão fazendo. Não sabem que estão brincando com fogo – que é a ideia totalitária que os atrai.

A sociedade aberta é seus inimigos (tomo 2)

Pg 131:
A liberdade, se for ilimitada, derrota a si mesmo. Liberdade ilimitada significa que um forte é livre para agredir um fraco e roubar a liberdade deste. Eis a razão por que exigimos que o estado limite a liberdade a certa extensão, de modo que a liberdade de cada um seja protegida pela lei. Ninguém deve estar à mercê dos outros, mas todos devem ter o direito de ser protegidos pelo estado.

Ora, eu creio que essas considerações, originalmente destinadas a aplicar-se ao Reino da força bruta, da intimidação física, devem também ser aplicadas ao reino econômico. Mesmo que o estado proteja seus cidadãos de serem atropelados pela violência física, pode levar nossos alvos à derrota pelo fracasso em protegê-los do mau uso do poder econômico. Sob tais circunstâncias, a liberdade econômica ilimitada pode ser tão suicida como a liberdade física ilimitada. E o poder econômico pode ser quase tão perigoso como a violência física, pois aqueles que possuem excesso de alimentos podem forçar os que passam fome a uma servidão "livremente" aceita, sem usar a violência. E admitindo que o estado limite suas atividades à supressão da violência e à proteção da propriedade, uma minoria economicamente forte pode, desse modo, explorar a maioria dos que são economicamente fracos.

Se esta análise é correta, então a natureza do remédio é clara. Deve ser um remédio político, um remédio semelhante ao que usamos contra a violência física. Devemos construir instituições sociais, asseguradas pelo poder do estado, para proteção dos economicamente fracos contra os economicamente fortes. O estado deve cuidar para que ninguém entre em entendimento não equitativo por medo de fome ou de ruína econômica.

A sociedade aberta e seus inimigos (tomo 1)

Pg. 125:
Estou perfeitamente disposto a ver algo restringida minha própria liberdade de ação, desde que possa obter proteção para a liberdade restante e desde que saiba que certas limitações de minha liberdade são necessárias; por exemplo, devo desistir de minha liberdade de atacar, se quero que o estado apoie a defesa contra o ataque. Mas exijo que não se perca de vista o objetivo fundamental do estado, quero dizer, a proteção daquela liberdade que não causa dano aos outros cidadãos. Exijo, assim, que o estado deva limitar a liberdade dos cidadãos tão igualmente quanto possível, e não além do que for necessário para conseguir uma limitação igual de liberdade.
...
Por certo é difícil determinar exatamente o grau de liberdade que pode ser deixado aos cidadãos sem por em perigo aquela liberdade cuja proteção é a função do estado. Mas o fato de ser possível algo como uma determinação aproximada desse grau está provado pela experiência, isto é, pela existência de estados democráticos. Evidentemente, este processo de determinação aproximada é uma das principais tarefas da legislação nas democracias. É um processo difícil, mas suas dificuldades não chegam ao ponto de forçar-nos a uma mudança em nossas exigências fundamentais.

Pg 289 (nota 4 ao capítulo 7):
A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. 
Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes. Enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos declarar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação. Assim, podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas.
 
Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Devemos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique a margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro ou à revivescência do tráfico de escravos.

Amos Oz

Contra o fanatismo

Pg 17:
Defendo a ideia que apenas os moderados de cada sociedade são capazes de conter os fundamentalistas. O Islã moderado é a única força que pode conter o Islã fanatico. O nacionalismo moderado é o único poder capaz de frear o nacionalismo fanatico, no Oriente Médio e em qualquer lugar.

Como curar um fanático

Loc 42:
Permitam-me sugerir que a curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas.

Karl Popper

Em busca de um mundo melhor Página 187: Kant e o Esclarecimento foram ridicularizados como ingênuos porque defenderam as ideias do liberalis...